segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

VIRTUTEM FORMA DECORAT


Para quem puder visitar a National Gallery of Art de Washington, se deparará com uma sala ao estilo do museu, mas com uma forte evocação em sua organização a Salle des États, aposento da Gioconda no Louvre, em uma espécie de versão em miniatura.
Cercada por obras de diferentes mestres, no centro ergue-se uma parede onde apóia-se uma bela donzela. Sua palidez parece se propagar por todo o lugar. Seu olhar é de um sentimento indecifrável, entretanto sua falta de sorriso contrasta fortemente da célebre pintura parisiense. Para todo efeito esta donzela é a precursora de toda essa poética leonardiana, onde um Juniperus, símbolo da castidade e pureza é literalmente transformado em uma real alegoria humana.
Na época de casamentos formados por interesses, como era o solo das uniões conjugais do século XV, não era incomum paixões proibidas, amores nunca consumados, infelicidades sentimentais. “A beleza adorna a virtude”. É sobretudo o retrato de uma mulher infeliz, sem ânimo, que sequer encara seu espectador de verdade. Um olhar sem foco real, pensativo. Um coração ferido, esmigalhado. Obrigada a acolher seu destino, ela posa, ereta, implacável, virtuosa; sua intelectualidade sobressai seus sentimentos mais sinceros, é aquela beleza enrijecida, aí entra a árvore, Juniperus, cujo nome é referência ao seu, quase como a crueldade de um destino já traçado desde seu berço. Uma árvore frágil, mas que veste-se de uma folhagem pontiaguda, falsos espinhos. Um retrato encomendado por seu verdadeiro amor, um desabafo sincero enviado num olhar. Por que me condenas a este suplício? Oh, vós que caminhas por onde caminhei, que observa minha vida como de uma janela. Diga uma só palavra e meu tormento termina. Diga que não me ama, me liberte desta prisão que se tornou meu coração para minha alma.
Uma Janela. Uma jovem de duas faces. Uma pintura de duas faces.
Se isso não é um verdadeiro epitáfio de um amor, não sei do que mais seria.
Retrato de Ginevra de Benci, genebra, ginepro, juniperus... o efeito de ocultar o íntimo, e fazer da beleza uma virtude, quando a verdadeira é inalcançável.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Cuspindo um pouco de veneno


Na imagem podemos contemplar um pequeno detalhe da parte interna do Retábulo de Issenheim, obra mestra de Matthias Grünewald, representando em meio a uma orquestra de anjos, muito provavelmente Lúcifer.
Lúcifer personagem que caiu em desgraça por sua ambição e egoísmo. Tantas vezes somos verdadeiros lucíferes e não percebemos. Quando abraçamos ao individualismo e conquistamos nossos desejos, quando não perdoamos e sim repreendemos, quando só enxergamos o nosso lado em uma determinada situação e formamos o que se chama opinião. Creio que todo mundo já teve sua fase satanista sem sequer se dar conta, ou mais provavelmente está e nunca sairá dela. Não estou citando uma visão religiosa das coisas, longe disso, todavia filosófica. Lúcifer é uma filosofia. As diferenças que nós humanos temos da perfeição, que apesar da desgraça possui sua beleza, sua linguagem, sua música; prazeres que divindade nenhuma poderia compreender, degustar. É algo do prazer de ser humano, de sentir anseios, felicidades, fome e sede; de diverti-se mesmo em meio a guerras, e mesmo morrendo de cede, brincar naquela última poça de lama. Viver sabendo que amanhã tudo poderá ser diferente, mas que cada dia é uma nova batalha, por isso muito provavelmente seu rosto atento, não é a expressão daquele que trama, mas que observa, que anseia.
Quantas vezes carregamos o título de herege, quantas vezes nos sentimos sozinhos na nossa própria certeza, aquelas idéias que os outros não conseguem aspirar, entender, ou simplesmente não querem enxergar.
É aquele toque de incompreensão, de sabermos o quanto somos diferentes. Será sua beleza só devaneio de uma alma imperfeita, ou será essa beleza o toque da razão? Por que ele foi punido? Por que a razão é tão punida por nós mortais? Será que algum deus jogou essa filosofia no inferno porque intimamente sabia de sua veracidade e quis nos mergulhar na selvageria? Não sei! O que sei é que abraçando nossos demônios e sofrimentos e aprendendo a conviver com eles é que realmente aprendemos a ser divino, e que divino é ser, além de tudo, HUMANO.

Um Prólogo


Antes de tudo, uma introdução. Não é uma síntese do que adiante escreverei, mas o porquê escrevi.
Era meados do ano 2000, época esperançosa pelo início do terceiro milênio, após uma exaustiva fase de superstições e divulgação apocalíptica; em uma revista comum me deparo com uma pequena imagem mágica. Me senti desafiado. Como semelhante coisa poderia ter se originado de mãos humanas? O que significava? Poderia eu estar ainda na casa dos oito anos, mas logo percebi que tudo aquilo estava envolto em algo de mistério. Veio-me então um segundo sentimento, fascinação. Recortei com cuidado com minha tesoura verde sem ponta, que me acompanhou por um bom tempo (boa tesoura!, permita-me confessar), e guardei dentro de um almanaque de Maurício de Sousa, posteriormente. A imagem foi depois colocada em uma pequena moldura, já desgasta pelo tempo, mas isso não vem ao caso.
Estamos agora em meados de 2006, te apresento o tártaro. Uma alma para ser aprisionada no tártaro, não precisava necessariamente merecer; bastava comer de algum fruto seu. Eu provei, o nome desse fruto é amor... Não que o tipo de amor que eu tenha sentido fosse algo de profano, mas me refiro ao amor em geral; pode parecer um demasiado exagero da minha parte, mas seguindo a linha lógica de uma pessoa que conviveu com estórias de tártaros e campos Elíseos, o amor é um grande demônio! Não nos refiramos as explicações kadercistas e modernas a essa citação, e sim ao contexto que adquiriu. Este amor não foi partilhado, foi uma ponte de um lado só; meus sentimentos que brotassem do coração, nunca concluiriam sua travessia, era um caminho sem rumo, sem fim. Imagine uma jovem alma cheia de sentimentos aprisionados, as mudanças que essas exercem sobre sua personalidade, seu comportamento. Eu já não era o mesmo, todavia me amava. É normal. Não para os outros. Iniciou-se uma caça as bruxas; a propósito, já havia se iniciado a muito tempo, entretanto só agora oficialmente.
Já experimentou um pouco de rejeição, doses de humilhação e ter sua dignidade humana arranhada, destruída? Se sim, lamento e mesmo assim o felicito. Quando somos encaixados em uma minoria, aprendemos a olhar para os lados, para o próximo, para os que também sofrem. É uma dessas fases de efeito permanente em sua vida, que depois o orgulhará pela resistência, todavia quando ainda estamos dentro dela é muito difícil enxergarmos isso. Tentamos polir nossa dignidade, mesmo que seja com o próprio sangue, ou a serenidade enganadora da morte.
A morte me sorriu algumas vezes, mas algo não permitiu que me aspirasse o sopro da vida. É normal de nos apegarmos a tantas pequenas coisas que julgamos grandes, e talvez sejam mesmo, e são esses detalhes que nos mantém respirando. O sorriso vivo superava o da morte. Fui salvo por aquela figura misteriosa que conheci através daquela pequena imagem. Confesso que desde cedo tive uma vocação a área artística, mas aquele foi o meu verdadeiro chamado; não hesitei, e me entreguei incondicionalmente àquele sorriso maroto que nem mesmo a morte foi capaz de superar.